A vida na hora - Wislawa Szymborska
- Amanda Azevedo
- 18 de mar. de 2021
- 2 min de leitura
"A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz."
Esse poema tem uma beleza na delicadeza com que traz, através da arte, algo do real.
Como coloca Antonio Quinet em seu livro O Inconsciente teatral, "o ser-para-a-arte advém do Real que cessa de não se escrever e se escreve".
A vida na hora, como a autora muito bem coloca, é esta sem ensaio, a qual vivemos, sorrimos, choramos, nos sentimos orgulhosos, às vezes envergonhados, criamos um modo de nos relacionarmos com o outro, somos interditados disso e reinventamos um novo.
Sentimos o baque de uma notícia inesperada, ficamos sem palavras, nos frustramos, sentimos angústia e às vezes conseguimos falar sobre ela. Às vezes não.
Somos atravessados e atravessamos os acontecimentos da vida. Vivemos assim, muitas vezes sem pensar.
Inconscientemente agimos, sentimos, falamos.
E o que quer que a gente faça, resta não só o que fazemos, resta-nos ainda o afeto. Afetos que as palavras ajudam a contornar. Às vezes isto, às vezes a arte; qualquer que seja a sua invenção.
(Na foto: Wislawa Szymborska. Imagem retirada de brainpickings.org)

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